O Mercado Visto da Rua: o Modelo de Habitação de Viena

A história da habitação social em Viena constitui um dos exemplos mais consistentes e inspiradores de política urbana no mundo. O seu modelo, desenvolvido ao longo de mais de um século, combina continuidade política, inovação arquitetónica e uma visão de cidade assente na justiça social e na qualidade de vida. A evolução deste sistema reflete a capacidade da capital austríaca de se adaptar a contextos económicos e ideológicos distintos sem abdicar de um princípio central: garantir o acesso universal a uma habitação digna e acessível.

A emergência do modelo vienense remonta ao período conturbado que se seguiu ao colapso da monarquia austro-húngara, em 1918. À época, Viena  (que era a quinta maior cidade do mundo) enfrentava uma realidade marcada pela sobrelotação, por rendas excessivas e por edifícios degradados. A situação económica era igualmente dramática: pobreza generalizada, níveis de desemprego elevados e uma crise habitacional sem precedentes.

Entre 1919 e 1934, num período conhecido como a “Viena Vermelha”, o governo municipal lançou um ambicioso programa de habitação social, financiado através de impostos fortemente progressivos sobre a propriedade e sobre bens de luxo. Esse programa resultou na construção de cerca de 64.000 fogos municipais, que alojaram aproximadamente 200.000 residentes, mais de 10% da população da cidade.

O impacto do projeto, porém, foi muito além do número de casas construídas. A habitação social tornou-se um poderoso motor económico, criando emprego e estimulando a economia local ao envolver construtores, arquitetos, carpinteiros e um vasto conjunto de outros profissionais. Mais do que um programa habitacional, tratou-se de um verdadeiro projeto de transformação urbana, económica e social.

Após a Segunda Guerra Mundial e o restabelecimento da democracia, o projeto foi retomado com determinação. O período pós-guerra foi marcado por uma intensa política de reconstrução, que chegou a atingir o ritmo de 10.000 novos fogos por ano.

Paralelamente, um novo enquadramento nacional permitiu o desenvolvimento da chamada habitação social de lucro limitado, um modelo fortemente regulado e subsidiado, promovido por cooperativas e sindicatos. Nas décadas seguintes, este modelo consolidou-se como o principal instrumento da política habitacional de Viena.

Em 1984, a cidade criou a Wohnfonds Wien, uma entidade pública responsável pela aquisição e gestão de terrenos destinados à habitação social. A sua criação foi decisiva para garantir que a construção pudesse prosseguir de forma contínua, mesmo em períodos de recessão económica, assegurando estabilidade e planeamento a longo prazo.

A partir de 2004, o modelo enfrentou uma nova fase de reconfiguração. As restrições orçamentais, a aplicação das normas europeias favoráveis ao mercado e uma viragem neoliberal na política urbana levaram a cidade a interromper a construção direta de habitação municipal. Desde então, Viena passou a depender quase exclusivamente das Associações de Habitação de Lucro Limitado (Limited Profit Housing Associations – LPHA) e das cooperativas, embora mantendo um rigoroso controlo público sobre os preços, a qualidade e a elegibilidade dos beneficiários.

Nos últimos anos, a cidade tem procurado recuperar parte da sua capacidade de construção direta. Viena voltou a construir habitação municipal — ainda que a um ritmo mais modesto, de cerca de 500 novos fogos por ano. Em 2018, introduziu também uma nova categoria de zonamento destinada à habitação social, permitindo a reclassificação de terrenos desde que dois terços da área construída sejam afetos a esse fim. Esta medida assegura uma distribuição equilibrada da habitação social por toda a cidade, incluindo nas zonas de maior valor imobiliário.

Atualmente, Viena continua a inovar e a integrar princípios de resiliência ambiental e climática nos seus projetos habitacionais, transformando o setor num verdadeiro laboratório de experimentação em descarbonização, eficiência energética e arquitetura sustentável. O modelo vienense demonstra que a habitação social pode ser simultaneamente uma política de coesão social, um instrumento de estabilidade económica e um espaço de inovação ecológica.

Mais de cem anos após a “Viena Vermelha”, a capital austríaca continua a provar que é possível manter uma política habitacional pública robusta, sustentável e inclusiva — uma política que serve tanto os cidadãos como o futuro da cidade.

Estrutura do Modelo de Habitação Social em Viena

O modelo habitacional de Viena assenta em dois pilares principais:

  1. Habitação municipal, de propriedade pública.

  2. Habitação social de lucro limitado, desenvolvida por entidades privadas, mas fortemente reguladas e subsidiadas pelo Estado.

Estas duas formas de provisão representam cerca de 42% do total de fogos habitacionais da cidade, tornando Viena uma das capitais com maior proporção de habitação social do mundo.

Habitação municipal

A habitação municipal tem raízes históricas profundas. A sua construção começou em 1923 e manteve-se praticamente ininterrupta até 2004, sendo recentemente retomada, ainda que numa escala mais reduzida. Atualmente, cerca de 21% do total de fogos habitacionais de Viena pertencem ao município. Estes apartamentos, que apresentam as rendas mais baixas da cidade, são atribuídos com base na necessidade e através de um sistema de lista de espera que avalia as condições socioeconómicas dos candidatos.

Existem hoje cerca de 200.000 fogos municipais, distribuídos por toda a cidade e acessíveis a uma ampla faixa da população. Em 2024, o limite de rendimento para acesso era de 57.600 euros anuais líquidos para um agregado unipessoal, o que significa que cerca de 80% dos residentes vienenses são elegíveis.

Os principais beneficiários são os agregados de classe baixa e média: dos cerca de 500.000 residentes em habitação municipal, 44% pertencem aos dois quintis de rendimento mais baixos.

Um dos aspetos mais distintivos do modelo vienense é a mistura social. Pessoas de diferentes origens, profissões e níveis de rendimento vivem lado a lado, criando comunidades heterogéneas e coesas. Uma vez admitido, o residente pode permanecer na habitação mesmo que o rendimento ultrapasse o limite definido para a admissão inicial, um mecanismo que evita segregação económica e estigmatização social.

O acesso à habitação municipal depende também de critérios de residência: é necessário viver em Viena há pelo menos dois anos para poder candidatar-se. O sistema de lista de espera atribui uma pontuação de um a dez aos candidatos, dando prioridade a pessoas sem-abrigo, indivíduos com deficiência, famílias com crianças ou residentes em condições degradadas. Historicamente, o sistema favoreceu cidadãos austríacos e pessoas com maior tempo de residência na cidade, mas mantém-se inclusivo e orientado pela justiça social.

Habitação social de lucro limitado

A habitação social de lucro limitado constitui o segundo grande pilar do modelo vienense. Desenvolvida pelas Associações de Habitação de Lucro Limitado (LPHAs), é uma forma híbrida que combina iniciativa privada com regulação pública rigorosa.

Estas entidades estão sujeitas à Limited Profit Housing Act, uma lei nacional criada em 1945 que define os princípios de operação e o limite máximo de lucro: 3,5% sobre o valor do imóvel ao longo do tempo. Todos os excedentes devem ser reinvestidos na manutenção dos edifícios ou na construção de novas habitações sociais, assegurando a sustentabilidade do sistema.

Atualmente, as LPHA são responsáveis por cerca de 21% dos fogos habitacionais da cidade e constituem o principal modelo de construção de nova habitação social. Metade destas entidades são cooperativas, cerca de 30% são sociedades por quotas e 20% sociedades anónimas. A sua gestão deve ser independente da indústria da construção, com limites salariais para dirigentes e uma dedicação exclusiva a atividades ligadas à habitação social.

Embora operem localmente, as LPHAs são reguladas a nível federal, o que reduz parcialmente a capacidade da autarquia de definir prioridades ou grupos-alvo. Ainda assim, Viena tem procurado mitigar esse efeito, promovendo a integração entre diferentes tipos de habitação e exigindo que novos projetos incluam unidades adicionalmente subsidiadas, como forma de combater a segregação urbana.

Um dos aspetos mais relevantes do modelo de lucro limitado é o sistema de “renda baseada no custo” (cost-rent), segundo o qual as rendas refletem apenas os custos reais de construção, manutenção e gestão. Os inquilinos têm acesso a declarações transparentes que detalham a composição das rendas, incluindo despesas administrativas, fundos de manutenção e remunerações de pessoal.

Para aceder a uma habitação de lucro limitado, os inquilinos devem normalmente realizar um pagamento inicial, variável consoante o projeto e as características do imóvel. Esse valor é posteriormente devolvido quando desocupam o fogo, com uma depreciação anual de 1%. Contudo, esses custos iniciais tendem a limitar o acesso das famílias com menores rendimentos, o que constitui uma das principais críticas ao modelo.

Apesar dessas limitações, a habitação social de lucro limitado tem desempenhado um papel fundamental na expansão e diversificação da oferta habitacional, assegurando qualidade, estabilidade e transparência num setor cada vez mais pressionado pelo mercado privado.

Nos últimos anos, Viena enfrentou o desafio de manter o acesso à habitação social sem comprometer a qualidade e a diversidade da oferta. Para tal, introduziu mecanismos que reforçam a equidade social, a eficiência espacial e a participação dos cidadãos nos processos de planeamento.

Uma das principais respostas da cidade foi a criação das chamadas SMART flats — unidades mais pequenas e fortemente subsidiadas, obrigatórias em todos os novos projetos de habitação de lucro limitado. Estas habitações apresentam disposições compactas e eficientes, pensadas para otimizar o espaço sem sacrificar o conforto. Estão sujeitas a limites máximos de renda e de contribuição inicial por parte dos inquilinos.

Por exemplo, um apartamento SMART de cerca de 70 m² implica um pagamento inicial máximo de aproximadamente 4.200 €, valor que pode ser parcialmente coberto através de apoios financeiros municipais. De acordo com os regulamentos da cidade, as SMART flats devem representar 50% de toda a nova construção de habitação de lucro limitado. Para garantir que chegam aos agregados com maiores dificuldades, a sua atribuição é mais restritiva do que a das unidades padrão, priorizando famílias monoparentais, jovens em processo de emancipação ou pessoas com necessidades especiais.

Conclusão

O modelo de habitação de Viena demonstra que uma política pública de habitação pode ser simultaneamente ambiciosa, inclusiva e economicamente sustentável. O sucesso da capital austríaca assenta numa combinação de visão política, planeamento urbano a longo prazo e responsabilidade social partilhada entre o Estado, as cooperativas e os próprios cidadãos.

Mais do que um caso isolado, Viena é a prova de que a habitação acessível não precisa de ser sinónimo de baixa qualidade ou de dependência pública, podendo ser, pelo contrário, uma força motriz de coesão social, estabilidade económica e inovação urbana.

Num contexto europeu em que o direito à habitação volta a estar no centro do debate, Viena recorda-nos que o acesso a uma casa digna é, e deve continuar a ser, uma prioridade coletiva. Portugal tem aqui uma referência concreta de como políticas de longo prazo, ancoradas em planeamento, regulação e visão pública, podem transformar não apenas o mercado imobiliário, mas a própria qualidade de vida nas cidades.

Artigo elaborado por: Gonçalo Miguel

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