O Mercado Vista da Rua: O desafio das cidades do futuro e o exemplo dos Superblocos

As cidades do século XXI enfrentam um ponto de rutura. A expansão urbana descontrolada, a dependência do automóvel e a fragmentação do espaço público comprometeram a qualidade de vida nas cidades, agravando as desigualdades e colocando em causa a sustentabilidade ambiental. Para responder a estes desafios, a densificação urbana surge como uma alternativa cada vez mais valorizada para tornar as cidades mais eficientes, resilientes e habitáveis. Poucos exemplos ilustram tão bem o potencial transformador dessa abordagem como o modelo dos Superblocks (ou Superilles) de Barcelona, criado por Salvador Rueda.

Este modelo representa uma das experiências urbanas mais ambiciosas da Europa em termos de mobilidade, sustentabilidade e qualidade de vida. Nascido da necessidade de reequilibrar o espaço público e de reduzir os impactos negativos do tráfego automóvel, este modelo propõe uma transformação profunda do desenho urbano e do modo de viver na cidade.

A experiência de Barcelona está a gerar interesse em muitas outras cidades europeias que mostram vontade em replicar o modelo, ao mesmo tempo que levanta questões críticas sobre equidade, gentrificação. Vejamos o porquê.

Lançado em 2015 como eixo estruturante do Plano de Mobilidade Urbana da cidade, o conceito dos Superblocks tem como objetivo reorganizar o tráfego e devolver o espaço urbano às pessoas. O teste piloto implementado no bairro Poblenou, em 2016, consistiu em restringir o tráfego de automóveis num conjunto de nove quarteirões, permitindo que o interior dos mesmos fosse ocupado predominantemente por peões, bicicletas, espaços verdes e equipamentos de uso público. A ideia era simples, mas ambiciosa: libertar até 70% do espaço e devolvê-lo à comunidade.

Este modelo inspira-se no traçado original do Plano Cerdà, concebido no século XIX, que desenhou a cidade numa grelha regular com quarteirões de 113 metros de lado. Esse desenho urbano, embora inicialmente pensado para facilitar a circulação automóvel, acabou por permitir a criação dos Superblocks — unidades urbanas que hoje se pretendem quase autossuficientes, com escolas, comércio, zonas verdes e equipamentos a curta distância. A densidade e a diversidade funcional de Barcelona, aliadas à sua intensa vida de bairro, criam o ecossistema perfeito para este tipo de intervenção.

Contudo, a experiência de Poblenou não foi isenta de críticas. Houve protestos de comerciantes, resistência por parte de alguns residentes e dificuldades de comunicação entre o município e a população. Contudo, a aprendizagem foi rápida. Percebeu-se que a revolução urbana tem de começar nos centros e alastrar-se de forma coordenada, adaptando o modelo às especificidades de cada bairro, evitando imposições dogmáticas e reforçando o diálogo com os cidadãos.

Hoje, mais de cinco Superblocks estão em fase de implementação e o objetivo do município é chegar aos 500 até 2030, transformando radicalmente a paisagem urbana de Barcelona.

Os impactos são visíveis e mensuráveis. A poluição sonora caiu para níveis recomendados pela Organização Mundial da Saúde e estima-se que a redução da poluição atmosférica possa evitar até três mil mortes prematuras por ano. Os espaços antes dominados por carros deram lugar a parques, esplanadas, zonas de lazer e de encontro — devolvendo às pessoas a cidade que lhes foi sendo retirada.

Mas nem tudo são rosas. A requalificação dos bairros intervencionados levou ao aumento do valor do imobiliário, expondo os riscos de gentrificação e do aumento do turismo. A transformação urbana provocada pelos Superblocos pode levar à deslocação de populações vulneráveis, à perda de diversidade socioeconómica e ao aumento da desigualdade urbana. A resposta da cidade tem sido apostar numa expansão rápida do modelo, articulada com políticas de habitação acessível e com mecanismos de contenção da especulação. A ideia é clara: transformar toda a cidade num espaço mais justo, inclusivo e funcional.

Um dos pilares do sucesso dos Superblocks é a sua integração com um sistema de mobilidade multimodal eficiente. A nova rede de autocarros ortogonal, com tempos de espera de cerca de dois minutos e cobertura uniforme, é um exemplo de como é possível repensar a circulação sem penalizar o tempo dos cidadãos. Com 95% da população a viver a menos de 300 metros de uma paragem de autocarro e uma espera média de dois minutos, o transporte público torna-se competitivo com o carro. A modelação de Rueda demonstra que uma redução de apenas 13% do tráfego já permite implementar os Superblocos, sem agravar o congestionamento nas restantes vias. A isto soma-se a expansão da rede de ciclovias, os corredores verdes, o reforço do metro e a articulação com os serviços de comboio regional. O automóvel privado não desaparece, mas deixa de ser o protagonista.

O maior desafio está agora na escala metropolitana. Todos os dias, cerca de meio milhão de pessoas entram em Barcelona, vindas de municípios vizinhos. Esta pressão exige soluções coordenadas, planeamento conjunto e investimento em redes de transporte intermunicipal. A cidade está consciente de que a sua sustentabilidade não pode ser pensada em isolamento.

Barcelona tem sido reconhecida internacionalmente como um laboratório urbano de inovação. A sua densidade populacional — cerca de 16.000 habitantes por km², atingindo os 53.000 no bairro do Raval — permite uma ocupação eficiente do solo e sustenta a vida de bairro com comércio local, serviços, diversidade cultural e mistura social. A cidade pós-carro não é uma utopia: é uma realidade em construção, com provas dadas de que é possível viver melhor com menos espaço automóvel e mais espaço partilhado.

Em última análise, os Superblocks não são apenas uma solução de desenho urbano. Propõem uma cidade mais saudável, mais justa, mais humana. Uma cidade onde a prioridade não é a velocidade, mas a convivência. Onde a qualidade de vida se mede em metros percorridos a pé, em árvores plantadas, em vizinhos reencontrados. A lição de Barcelona é clara: para densificar com inteligência e criar cidades verdadeiramente sustentáveis, é preciso planear, ouvir, adaptar — e ter coragem para mudar.

Contudo, a aplicação deste conceito exige adaptações ao contexto morfológico, social e político de cada cidade. É mais provável que o modelo funcione em áreas com elevada densidade urbana e uma rede de serviços diversificada. Além disso, o sucesso depende da integração com sistemas de mobilidade regional, como demonstrado pela necessidade de melhorar os transportes intermunicipais na área metropolitana de Barcelona.

O modelo dos Superblocos está alinhado com várias iniciativas da União Europeia, como o Pacto Ecológico Europeu e a Agenda Urbana para a UE. Estas plataformas promovem a cooperação multinível e o financiamento de projetos que aumentem o bem-estar dos cidadãos e a sustentabilidade das cidades. A ambição europeia de criar cidades mais habitáveis, resilientes e neutras em carbono pode encontrar nos Superblocos um grande aliado.

Será possível aplicar este conceito noutras cidades europeias? E em Portugal? Num próximo artigo, vamos responder a estas (e outras) questões.

GM


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